Vivendo sob tensão e medo, com um largo histórico de violações, os indígenas Guarani Kaiowá das retomadas Avae’te, área contígua à Reserva Indígena de Dourados (MS), voltaram a denunciar a ação de fazendeiros e sitiantes locais sobre a área da retomada. Bombas, incêndio e pulverização de agrotóxico fazem parte dos novos ataques denunciados pelos indígenas. A tensão iniciou em 10 de novembro.
Os indígenas denunciam que, no dia seguinte (11), por volta das 11h, iniciaram os ataques com a chegada dos seguranças privados de um fazendeiro da região. Por volta das 12h40, chegaram agentes da Polícia Militar, “aí que começou o forte para nós. Atiraram balas de borracha, atiraram bombas de gás e atacaram nós”, conta uma indígena da retomada Avae’te II, que presenciou o ataque e, por segurança, teve sua identidade preservada.
“Por volta das 16h40 entraram também na aldeia atual, a retomada Avae’te II. Uma menina, que brincava no local, e um guri [menino] que estava dormindo na rede quase foram atingidos pelas bombas de gás de pimenta que jogaram”, relatou a indígena.
Na ação, barracos de lona, roupas pessoais e de cama, itens pessoais e até as cestas básicas que serviam de alimentos aos indígenas na retomada foram completamente destruídos pelo incêndio. “Queimaram tudo mesmo, derrubaram e levaram nossos barracos, nossas lonas, tudo”, lamentaram os Guarani Kaiowá da retomada Avae’te II.
Em dois anos da retomada Avae’te II, esta não foi a primeira vez que os indígenas viram-se assediados por fazendeiros e sitiantes, que reivindicam parte do território de ocupação tradicional dos indígenas.
“Não aguentamos mais ataques, não queremos mais confrontos. Eles [fazendeiros e sitiantes] falam que nós atacamos, mas é eles que atacam nós, eles que têm arma de fogo, nós temos estilingue e fecha, é só o que a gente tem. Aí vem falar que nós atacamos eles, quando são eles que vêm atacar nós”, contou um dos moradores mais antigos da retomada, que também iremos preservar sua identidade devido às relações hostis.
“É complicado porque, vou te contar, a Polícia Militar é muito violenta com os indígenas, contra os Guarani Kaiowá. Estamos aqui sofrendo, violentados pela Polícia Militar assim como pelos pistoleiros dos fazendeiros”, reforça a liderança indígena.
A prisão Autor confesso do incêndio que queimou uma casa na comunidade de Avae’te, no dia 6 de outubro, o sitiante Giovanni Jolando Marques foi preso, por determinação da Justiça Federal, em 13 de outubro, e levado à carceragem da Polícia Federal na cidade de Dourados, a 233 km de Campo Grande (MS). O produtor rural diz ser proprietário de uma área próxima à terra indígena e arrendatário de terras que fazem parte do território tradicional reivindicado pelos Guarani Kaiowá.
Esta não foi a primeira ocorrência. Marques responde a outros processos judiciais devido às constantes ameaças, confrontos e tentativas de tomar posse da área indígena. Em setembro de 2019, seus seguranças privados foram denunciados por disparos de arma de fogo contra a retomada. Em julho de 2021, Tonico Benites, liderança da Aty Guasu – a Grande Assembleia do Povo Guarani e Kaiowá -, registrou boletim de ocorrência por ameaças de morte, feitas pelo sitiante.
Há um mês, a Aty Guasu denunciou o incêndio de sete casas de reza Guarani e Kaiowá, segundo a reportagem publicada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre os tekohas atingidos, estão o Avae’te, Takuapiry, Amambaí e Guapo’y – cada um teve uma casa de reza incendiada. Já no tekoha Rancho Jacaré, foram três episódios apenas neste ano.
Os indígenas acusaram o sitiante de ser o mandante do incêndio que destruiu a casa de reza na retomada Avae’te. Em entrevista ao Campo Grande News, ele afirmou ter ateado fogo em um momento de fúria. “Eu fui lá e coloquei fogo naquele barraco, foi eu que coloquei, assumo minha responsabilidade, mas ele (barraco) estava dentro da área que eu sou arrendatário”, admitiu ao portal de notícias. À época, o Ministério Público Federal (MPF) pediu a prisão preventiva de Giovanni Jolando Marques por homicídio qualificado, pois assumiu o risco de matar ao atear fogo.
Agora, enquanto os Guarani Kaiowá recolhem a munição disparada contra a retomada, os advogados do sitiante buscam flexibilizar a prisão, contam os indígenas.
Semana de tensões As ações hostis não cessaram na quinta-feira, 11 de novembro. Um dia após os ataques com bombas de efeito moral e incêndio das casas, os indígenas registraram a pulverização de agrotóxicos próximo à retomada, por ventar bastante no momento e estar sendo aplicado bastante próximo à retomada, o produto se espalhou também pela área indígena causando complicações respiratórias aos indígenas.
Os indígenas denunciaram novamente o ocorrido à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Ministério Público Federal (MPF) e à Polícia Federal (PF). Na sexta-feira, 12, agentes da Funai, da Polícia Federal, da Polícia Civil e do Batalhão de Choque estiveram na retomada Avae’te II. Segundo as lideranças, compareceram ao local para apaziguar o conflito que tem gerado tensões e insegurança aos indígenas.
Estes não são casos isolados, na semana anterior, no dia 4 de novembro, os indígenas da retomada Avae’te I, próximo a retomada Avae’te II, já haviam denunciado uma ofensiva de policiais militares e seguranças privados de uma fazendo da região. Segundo a denúncia, os tiros atingiram alguns indígenas, deixando feridos no local.
Há menos de três meses, três casas do povo Guarani Kaiowá foram queimadas por seguranças privados de fazendeiros, na mesma área. Seguranças privados não se intimidaram com indígenas filmando a ação e ameaçaram retornar à noite. A violência também foi denunciado.
Em 29 de janeiro de 2019, os indígenas Guarani Kaiowá registram e divulgaram nas redes sociais disparos na retomada Avae’te I. Na gravação, é possível ouvir os Guarani Kaiowá afirmando que os tiros, aparentemente de bala de borracha, saíam das armas de agentes da Força Nacional, enviada para a região na semana anterior após solicitação do governo estadual. A denúncia também foi realizada junto à Funai e demais órgãos competentes.
Violência contra os povos indígenas no MS O Mato Grosso do Sul (MS) está entre os estados mais violentos para os povos indígenas, conforme o relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Na avaliação da entidade, o segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19 e pela omissão do governo federal.
Os dados obtidos junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e às secretarias estaduais de saúde revelaram 34 assassinatos indígenas no Mato Grosso do Sul, ficando atrás apenas dos estados de Roraima, com 66 assassinatos, e o Amazonas, com 41 casos registrados. Informações detalhadas sobre as vítimas e circunstâncias dos assassinatos não foram fornecidas pelos estados e pela Sesai.
De acordo com o levantamento, chama atenção o considerável aumento dos assassinatos de indígenas no Brasil. Em 2020, 182 indígenas foram assassinados – um número 61% maior do que o registrado em 2019, quando foram contabilizados 113 homicídios.
Não diferente, o Mato Grosso do Sul também está entre os estados com maior registro de casos de “violência por omissão do poder público”. Em 2020, foram registrados 110 suicídios de indígenas em todo o país, 28 casos registrados no Mato Grosso do Sul, ficando atrás apenas do estado do Amazonas, que registrou 42. Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
No Mato Grosso do Sul, em especial Dourados, os Guarani Kaiowá também têm sido vítimas de uma onda de comentários preconceituosos e de disseminação de ódio. Em 2020, 24 indígenas Guarani e Kaiowá foram resgatados de uma fazenda no município de Itaquiraí/MS, onde estavam submetidos a uma situação análoga à escravidão.
Dados da violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul e demais estados podem ser acessados no site do Cimi, e também na plataforma Caci – mapa digital que reúne as informações sobre os assassinatos de indígenas no Brasil. Caci, sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas, também significa “dor”, em Guarani.
* Fonte: Assessoria de Comunicação do Cimi (Adi Spezia), com edição do ANDES-SN